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O que é a parte invisível da cadeia e por que você deveria se preocupar com ela

Boi passa por várias fazendas até chegar ao consumidor. Transparência é saída para garantir carne livre de desmatamento, diz especialista

JULIANA TINOCO

Um boi pode passar por até dez fazendas ao longo de sua vida. De modo geral, são pelo menos três propriedades distintas durante as fases de cria, recria e engorda. O bezerro nasce em numa fazenda de cria, onde costuma ficar até cerca de seis meses. Recém desmamado, ele vai para a recria, onde vive até por volta de um ano ou um ano e meio, quando passa a ser chamado de garrote e é vendido para uma fazenda de engorda, onde ganha peso e permanece até o abate. Essas etapas fazem parte da cadeia da carne e, para garantir que a proteína bovina que você consome não está associada ao desmatamento ilegal da Amazônia, é preciso analisar a trajetória completa.

O problema é que essa cadeia não é transparente. Nem sempre é possível rastrear por quantas e quais fazendas o boi passou. Muitos frigoríficos e abatedouros não exigem o rastreio dos fazendeiros e, a maioria dos que fazem, consideram apenas a última fazenda pela qual o animal passou ou está como pré-requisito para a compra direta. Os fornecedores indiretos, ou seja, as fazendas pelas quais o boi passou antes daquela na qual o negócio é fechado diretamente, são o que os especialistas chamam de “a parte invisível da cadeia”. Mas ela existe e precisamos considerá-la.

GTA é ferramenta, mas falta fiscalização e transparência

Um dos principais instrumentos para rastrear os bois no Brasil hoje é a Guia de Transporte Animal (GTA), documento que deve ser emitido sempre que um lote de animais vai de uma fazenda para outra ou para um frigorífico. No entanto, os dados não são transparentes o bastante. Nenhum dos estados da Amazônia Legal divulga seus GTA de forma oficial, o que faz com que a parte invisível fique mais difícil de ser rastreada. Se nem as autoridades têm esse controle, para o consumidor final é quase impossível obter esse tipo de informação. É por isso que quase ninguém pode dizer que sabe, de fato, de onde vem a carne que compra no supermercado.

Outro problema é a falta de fiscalização. Sem ela, a GTA, sozinha, também nem sempre consegue garantir que os animais não passaram por áreas ilegais. Isso porque muitos fazendeiros utilizam de artifícios para burlá-la. “O animal pode ser registrado numa propriedade de área legal, por exemplo, ter a GTA toda bonitinha, mas a pessoa tem uma propriedade numa terra indígena, completamente ilegal, onde os animais engordam. Por falta de fiscalização, esse transporte não registrado acaba acontecendo sem nenhum entrave”, relata Ritaumaria Pereira, pesquisadora do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Em campo, os depoimentos dos fazendeiros deixam claro que eles sabem que não terão consequências e, por isso, em nome do lucro, continuam investindo em atividades ilegais.

“Lembro de um produtor de São Félix do Xingu, que tinha uma propriedade completamente legal em Água Azul do Norte e outra dentro de uma área indígena. Ele me contou que, como ninguém fiscalizava, ele transportava o gado entre uma propriedade e outra. Mas, quando era o momento de vender, tirava a GTA de engorda e mandava para o frigorífico com o animal saindo da fazenda legal, mesmo ele saindo, de fato, da terra indígena. Isso a gente só descobre indo a campo e ganhando a confiança de alguns produtores”, ilustra Ritaumaria Pereira.

Grilagem de terra e especulação são outros elementos que fazem parte dessa cadeia invisível. Os retrocessos ambientais vividos nos últimos anos acabam piorando a situação e funcionando como um incentivo para a invasão de terras, inclusive públicas. “O pasto é ainda a melhor forma de mostrar que aquelas pessoas estão na terra. E esse boi não morre de velho no pasto, porque ele sempre vai achar mercado”, afirma a pesquisadora do Imazon.


Avanços da TAC da carne ainda são insuficientes

Para tentar evitar a compra de gado de áreas com desmatamento ilegal ou em terras indígenas e unidades de conservação, o Ministério Público Federal aplica, desde 2009, os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), acordos firmados com alguns frigoríficos do Pará. Com o TAC os produtores precisam ter, por exemplo, fazendas com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e planos para regularização ambiental e de seus trabalhadores.

O TAC garantiu alguns avanços, mas eles ainda são insuficientes, especialmente porque os dados não são públicos, fato que, para a pesquisadora do Imazon, não acontece por acaso. “Quem vota as leis é quem é o dono do gado”, observa. Ela explica que alguns produtores reivindicam a privacidade de seus dados, o que, na prática, diminui os subsídios para que a fiscalização ou as pesquisas da área façam cruzamentos de informações para ter dados mais concretos sobre o que acontece de fato.

Na prática, só há dados sobre os produtores diretos e somente dos frigoríficos que assinaram o TAC, que hoje são cerca de metade dos instalados na Amazônia. Os outros 50% não disponibilizam nenhuma informação, nem mesmo dos fornecedores diretos.

“Eles não assinaram o TAC, então não tem nenhum compromisso de verificar a situação dos produtores dos quais compram”, explica a pesquisadora do Imazon.

Segundo a pesquisadora, é importante lembrar que a cobrança precisa vir de cima porque enquanto o produtor achar para quem vender, ele não vai investir em regularização.

“Aqui no Sul do Pará, mesmo os que não conseguem vender para os frigoríficos que estão no TAC, vendem para outros no Tocantins, que não assinaram”.

Desde 2009, segundo Ritaumaria, já se falava em monitoramento dos indiretos, o que até hoje não aconteceu. “Não é algo tão novo, estamos falando de 13 anos atrás”, observa.

Segundo ela, nos últimos anos, os maiores frigoríficos estão pensando em planos para modernizar e monitorar toda a cadeia a partir de 2025. “Ou seja, ainda vão precisar de mais três anos”, continua. “O ideal seria que a GTA fosse transparente para todos os elos da cadeia, assim, não só os frigoríficos, como também a sociedade civil poderiam ajudar a pressionar e a monitorar”, completa.

Formas de fazer isso de maneira mais transparente já existem. O mercado da União Europeia, por exemplo, pede que o animal seja rastreado desde o nascimento por chip, pelo Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Bovinos e Bubalinos – SISBOV, uma ferramenta de identificação individual que geralmente é colocada na orelha do animal. Esses bois costumam ser vendidos para frigoríficos habilitados especialmente para esses mercados, com dias de abate específico, tudo controlado.

“Esse é um modelo que a gente poderia insistir para que, no futuro, fosse o único aceito, porque ele é o jeito mais certo de saber onde aquele animal passou desde o seu nascimento”, opina a pesquisadora do Imazon.

Foto: Ritamaura Pereira

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